TEXTO AVULSO 📃 Resenha sobre linguagem e significação no filme “GOSTO DE CEREJA”, DE ABBAS KIAROSTAMI

Publicado originalmente na revista Muiraquitã: Revista de Letras e Humanidades, sob o título "A linguagem no filme 'Gosto de Cereja', de Abbas Kiarostami, e a significação nos elementos de suicídio, solidariedade e dever". Replico-o brevemente editado. Obrigada pela leitura! :)

Uma atitude que se limite ao sensorial e seja passiva, não passe à ideia, não consistiria, para Martin¹, uma atitude estética. A atitude estética envolve uma distanciação do espectador, que não se vê apenas diante de um estímulo sensorial, mas que tem consciência e é livre em sua participação, tendo ideias a respeito do que vê. Explorando esse aspecto das ideias, Bordwell² nos traz uma noção interessante quanto ao espectador, na relação que faz com o cinema clássico hollywoodiano, dizendo que ele constrói hipóteses sobre aquilo a que assiste. O espectador tem esquemas que se relacionam a determinadas normas do cinema, expressas em sua linguagem particular, em sua técnica, esquemas os quais permitem que ele entenda o filme em sua lógica.

Embora possamos dizer que “Gosto de Cereja”, de Abbas Kiarostami, apresente elementos do cinema clássico, ele não é considerado num todo como tal. A sua construção irá, pelo contrário, romper com alguns paradigmas clássicos. Busco explorar, neste texto, a linguagem e, especificamente, a linguagem cinematográfica nesse filme iraniano.

O diretor Abbas Kiarostami, também poeta, insere-se em um contexto pós-revolução, quando na história do Irã vê-se a passagem de um regime autocrático apoiado pelos Estados Unidos a um regime teocrático, o governo dos Islâmicos. Nesse contexto, observamos o aspecto da repressão, que diferente de como é retratada em O Encouraçado Potemkin, filme russo de relevância na inovação técnica, na história do cinema, que critica a repressão e a mostra de modo mais explícito como forma de controle social³, mostra a mulher atriz iraniana que usa véu - exigência para que as mulheres possam participar nos filmes - e um contexto que Araújo4 vai referir como de “supressão de temas divergentes aos ensinamentos islâmicos”, que “forjou nesse cinema uma linguagem simbólica, que apresentava, através de metáforas visuais, alegorias ao cenário político-cultural iraniano”.

O filme inicia por uma montagem em contiguidade, em que é possível ver um homem dirigindo seu carro, olhando para fora, e são mostradas então pessoas do lado de fora, que perguntam ao homem se procura por trabalhadores. Alguém fala ao telefone – ouvimos a sua voz, mas está oculto ao espectador - e sobre problemas relacionados a dinheiro.

Ao longo do filme, se faz esse uso do offscreen, um elemento da narrativa expressionista5 e que, aqui, ao mesmo tempo que permite revelar o personagem, envolve-o de mistério. Ao longo do filme, também, veremos partes em que sua narrativa não nos fornece elementos conclusivos sobre o que ocorre, clara e objetivamente. Como nos diz Araújo4, no princípio da incerteza, de que o diretor se utiliza, “o espectador nunca pode prever o espetáculo cinematográfico, tampouco completá-lo com finais conclusivos”. O carro em movimento, por sua vez, nos auxilia a explorar outro elemento premente à sua narrativa, o espaço.

O motorista, Badii, parece observar o que o homem diz ao telefone. O homem, em offscreen, oculto, é parte do mistério sobre o que procura Badii. Faz um retorno, uma das idas e vindas por trajetos iguais que se repetem ao longo do filme. A câmera nos revela a cabine de telefone, e o homem que falava antes ao telefone. Badii diz poder ajudar com dinheiro. Oferece carona. O homem recusa, diz estar trabalhando. Mais adiante, vemos recusa semelhante: um não ir, pelo dever, Badii representando a distração a ele.

Ele dá carona a um jovem soldado, de origem do Kurdistão, que se dirige ao quartel. Novamente se usa a montagem em contiguidade, usando-se plano e contraplano, pelo que se acompanha a conversa dos dois personagens. A técnica na obra ajuda na exploração dos diálogos, do intercruzamento de informações que o filme nos vai oferecendo. Badii faz o primeiro trajeto de subida da montanha. Revela ao soldado­ – e, portanto, ao espectador – o buraco onde intenciona ser enterrado, o espaço que na narrativa se cava como o da morte contrastando com natureza viva: montanha, cerejeira, pessoas. Há um dilema moral. O jovem diz que não poderia fazer o que ele pede, jogar terra, em cima de uma pessoa, no que o homem redargui que a pessoa estaria morta. Diz ao menino que é a vontade de Deus que ele o ajude. O jovem recusa. Diante da recusa do menino, Badii diz: “Você está destinado a usar uma arma, não uma pá”. O garoto sai correndo.  Posteriormente Badii vê soldados marchando.

Freud6 em O Mal Estar da Civilização nos falava a respeito de um princípio do prazer e do princípio da realidade. O externo e suas leis, normas como, talvez, o trabalho, refletem uma realidade de que, seguindo o princípio do prazer, poderíamos, nessa motivação, nos abdicar. Aqui vemos uma das muitas tensões, ou contrariedades, ao longo da obra de Kiarostami, que apresentam ao espectador uma abertura à reflexão. Freud na mesma obra também nos fala que nos planos da “Criação”, dito assim com aspas (Freud não acreditava em Deus), não estava que fôssemos felizes; teríamos momentos de satisfação de necessidades, mas não seria possível atender a todas elas. Badii representa, na possibilidade de seu suicídio, a desesperança frente a essa tensão imposta pela realidade e a qualidade de se ser humano, a da satisfação-insatisfação, de que Bagheri, um outro passageiro, irá mais adiante no filme falar.

Badii segue dirigindo, observando, buscando um novo passageiro. Olha a paisagem, distraído, percebe algo errado seguido de um barulho. Uma roda do carro caiu à beira da estrada em que desce a montanha. Um grupo de trabalhadores surge; um ancião sorridente em meio a outros deles aparece do lado de fora do carro, a câmera vinda do interior deste. Eles erguem o carro e ajudam a devolver a roda ao caminho do viajante.

Cena trabalhadores empurrando o carro à estrada.

A montanha, um espaço-personagem, constitui um caminho que Badii percorre para determinado fim. Durkheim7, sociólogo francês que fez ampla pesquisa sobre o suicídio, fez classificações do mesmo, dentre as quais está a do suicídio altruísta. Durkheim7 nos fala: “Quando é desligado da sociedade, o homem se mata facilmente [o suicídio egoísta], e também se mata quando é integrado nela demasiado fortemente [o suicídio altruísta]”. Coutinho8 para esse contexto do suicídio altruísta cita os kamikazes, no Japão, e também faz a seguinte citação de matéria no jornal O Estado de São Paulo, de 2009: “70 mil iranianos se oferecem a ato suicida (a bomba) contra Israel”, o que seria uma “resposta à (...) ofensiva israelense na Faixa de Gaza”.

Os planos de Badii não nos remetem à concepção do suicídio altruísta que vemos de Durkheim. No entanto, dão-se em meio a um contexto cultural de fundamentalismo islâmico. As figuras do jovem soldado e, mais adiante, do imigrante afegão que fala da guerra em seu país, nos remetem a uma violência, a da guerra. O filme explora a relação dos personagens com o dever, que acima pôde ser relacionado à realidade imposta, e ao mesmo tempo a abdicação dele, pela desesperança que Badii vem representar. Explora a solidariedade. O suicídio de Badii não teria uma motivação comunitário-religiosa, mas seria a ajuda financeira ao necessitado que aceitasse sua oferta. Mesmo Bagheri, o personagem que irá aceitar a sua oferta, lhe será solidário, dirá que passou por dor semelhante.

Badii segue dirigindo. Oculto à tela, o imigrante afegão, que depois passamos a ver. Diz que entre dois e três milhões de afegãos vivem no Irã por causa da guerra em seu país. Badii menciona então a guerra no Irã ele mesmo. Usa-se o travelling para acompanhar o carro até que ele pare junto a outro afegão, um seminarista. O seminarista que vai ao passeio em que Badii mostra o buraco onde ele ficaria deitado após tomar pílulas para dormir; Badii diz que ele o ajudaria “como um irmão amável”.

A câmera está fixa por cerca de 35 segundos mostrando um buraco com grades por onde cai o cascalho que uma grande máquina joga ali. A câmera fixa e o movimento observável pela imagem ressoam, da história cinematográfica, o primeiro cinema, com seu trabalho com vistas, as atualidades, seu aspecto documental9. Quanto a isso, é válido ressaltar o que nos diz Araújo4 em sua análise de filmes de Kiarostami: “A persistente aparência documental (...) não permite uma cisão entre o que é ficção e o que é documentário. (...) O espectador é incapaz de determinar aquilo que vê”. Uma câmera estática, por outro lado, pode ser compensada pela intensidade dos componentes internos da imagem, dos sentimentos incutidos¹.  

Badii observa. Depois, a sombra de Badii contrasta com a imagem do buraco. Um travelling acompanha o personagem que, então, senta-se sobre uma pedra. As grandes rodas de uma máquina passam e ficam em primeiro plano; depois em plano médio Badii, com a cabeça baixa envolto da fumaça de areia que a máquina deixa ao passar. Em contraplongée a máquina e um pedregulho que rola abaixo a montanha. Badii permanece sentado em meio à fumaça até que um trabalhador se aproxima e insiste para que saia dali, que tire seu carro para que o cavador possa trabalhar. Badii aqui é a distração à instituição, ao sistema e suas máquinas – máquinas que, na guerra, são usadas para matar. O trabalhador pergunta se está doente, se quer chá. Novamente, a solidariedade. Bordwell² nos fala de uma redundância no cinema clássico, que pode se dar pela repetição de informações por meio da fala e ação de personagens. Vemos nos aspectos da reiteração do dever como importante e as ações que nos remetem à solidariedade como uma repetição, implícita na significação da narrativa do filme. Esses dois elementos agregam à logicidade da história, que se misturam às tensões trabalhadas na narrativa, num todo aberto, complexo. 

O último passageiro já é introduzido à narrativa (por sinal em offscreen) pelo aceite à oferta de Badii. Segue, contrariamente, uma longa conversa em que o personagem fala de que também ele já quis tirar sua própria vida e da natureza, seus frutos, a vida que o chamou à vida; por fim, uma longa fala no sentido de convencer Badii a não se matar. Bagheri, o passageiro, diz: “Tenho sido um prisioneiro deste deserto durante 35 anos”. O espaço como parte da narrativa toma a figura de um deserto, pela constante areia. A montanha, também um “deserto”, é a prisão de Badii no mundo-prisão onde não deseja permanecer. Um travelling passa a acompanhar o carro enquanto o senhor fala e Badii fica em silêncio. Bagheri fala do gosto das frutas, fala das estações, da lua. Há uso do humor. Diz: “As pessoas do outro lado gostariam de vir para cá. E você quer apressar sua ida pra lá!”. Prestes a descer para ir ao trabalho, recita a letra de uma música de amor turca. Fica mais evidente pelas falas que ele irá fazer o que o homem pediu. Irá usar o dinheiro para o tratamento de seu filho. A possibilidade da morte de Badii é associada à salvação de outro.

Badii segue dirigindo. Depois, irá retornar e procurar por Bagheri no seu trabalho. Para encontrá-lo, descreve-o ao atendente de caixa do museu como um homem que carrega codornizes para estudá-las e que tem um filho com anemia. O senhor Bagheri dá instruções a crianças de como fazer o corte nas codornizes, de modo que os órgãos não caiam. Badii o espera. Olha para a paisagem – a que a câmera mostra por uma panorâmica. Ele pergunta a Bagheri se está bem. Pergunta se matou os codornizes que usava, e ele responde que sim, para o trabalho. Badii cobra-o uma segunda vez que cumpra o que disse que iria fazer, dessa vez pedindo que atire pedras e o sacuda, para o caso de estar apenas dormindo, não morto.

Usa-se o travelling, de cima para baixo, mostrando o prédio onde Badii mora e a sua movimentação no espaço até sair. Como vemos em Martin¹, os movimentos de câmera podem ter uma função tanto descritiva quanto dramática, neste caso, enfatizando determinado aspecto. Por esse espaço-lar se prenuncia algo, ao espectador é dada a imagem que leva ao desencadeamento sobre o que faz o personagem ou o que fará. Outro travelling acompanha o carro. Está escuro. Sabemos que Badii se dirige ao local onde se mataria. Troveja. Badii desce do carro, que então parte. Deita-se no buraco. Vemos sua imagem de olhos abertos. A imagem torna-se preta. Ouvimos o som da chuva.

Bordwell² nos fala de uma produção e a narração não explícitas, como invisível, mas presente, e a partir do uso de flashbacks no filme clássico conclui que “essa é uma das fontes do poder do observador invisível: a câmera parece sempre incluir a subjetividade do personagem em uma objetividade mais ampla e definida”. Abbas Kiarostami, embora possa usar a câmera nessa acepção clássica, rompe com o classicismo ao mostrar, no final do filme (sem final feliz ou conclusivo), a equipe do filme fazendo filmagens, enfim, explicitando aquilo que por regra, não se mostraria. E assim temos um final para o filme.

 

¹MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.

²BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema. Vol II. São Paulo: SENAC, 2004.

³LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. O encouraçado Potemkin, Outubro e a Revolução russa: usos da história no processo criativo de Sergei Eisenstein. Alceu, v. 17, n.32, p. 98-112, jan./jun. 2017. Disponível em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/index.php/alceu/article/view/136/134 Acesso em: 11 jul. 2023.

4ARAÚJO, Denize Correa. Pluralidade estilística no cinema de Abbas Kiarostami: análise dos filmes “Onde fica a casa do meu amigo?”, “Gosto de cereja” e “Dez”. Lumen, v. 5, n. 9, Jan./Jun. 2020. Disponível em: http://www.periodicos.unifai.edu.br/index.php/lumen/article/download/151/185 Acesso em: 11 jul. 2023

5CÁNEPA, Laura Loguercio. Expressionismo alemão. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006. (Col. Campo Imagético)

6FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros textos [1930-1936]. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

7DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

8COUTINHO, Alberto Henrique Soares de Azeredo. Suicídio e laço social. Reverso,  Belo Horizonte,  v. 32, n. 59, p. 61-69, jun.  2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952010000100008&lng=pt&nrm=iso Acesso em:  30  jun.  2023

9COSTA, Flávia. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006. (Col. Campo Imagético)